Fake News: o papel e os impactos das novas tecnologias na democracia brasileira
Fake News: o papel e os impactos das novas tecnologias na democracia brasileira
‘Iniciativa de regulamentar as plataformas digitais atende necessidades já previstas em lei’, afirma Augusto de Arruda Botelho
Por Mirielli Carvalho
26/10/2023 18:42
O PL das Fakes News que busca regulamentar as plataformas digitais teve sua tramitação paralisada após pressão das big techs e acusação de que a iniciativa promoveria censura. O projeto, entretanto, segundo o secretário nacional da Justiça, Augusto de Arruda Botelho, atende necessidades já previstas em lei e que precisam ser especificadas de acordo com as inovações tecnológicas.
Durante participação em painel no segundo dia da 8ª Conferência da Advocacia Paranaense, promovida pela seccional do Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) e realizado nesta quinta-feira (26/10), Botelho detalhou como a discussão foi contaminada por ideologia, explicou o contexto atual e citou exemplos de como as fake news têm afetado a democracia brasileira.
Para o secretário, é preciso entender o impacto econômico da realidade do uso massivo das novas tecnologias para discutir fake news. ”E como é que a gente entende esse impacto? Pegando as dez maiores empresas do mundo. As big techs, empresas e plataformas de comunicação hoje integram o rol das dez maiores empresas do mundo”, argumentou.
Segundo ele, os impactos do crescimento das big techs e das plataformas digitais na democracia brasileira são percebidos através da criação de discussões na sociedade de temas que jamais deveriam ser um debate, posto que inexistente.
”Discutimos a viabilidade da volta do voto impresso diante de uma suposta fraude a um código-fonte de uma urna. Podem se produzir textos, debates em programas de televisão, em rádios, aonde for sobre essa matéria. Aqueles que propriamente entendem da matéria, sabem da impossibilidade técnica de você estar discutindo-a, mas o assunto virou uma discussão”, pontuou.
Durante sua fala, Botelho citou os ataques antidemocráticos do 8 de janeiro como exemplo do resultado ”direto, prático, lamentável, criminoso e perigoso” de impacto das ”sabidamente notícias falsas” na democracia brasileira. ”Parte significativa daqueles que insurgiram contra o Estado divulgaram notícias falsas através de aplicativos de mensagens dessas big techs que estão entre as dez mais rentáveis do mundo e, sim, conseguiram aglutinar centenas de pessoas”, argumentou.
”Qual a premissa lógica de uma rede social? Do que ela se alimenta? A lógica algorítmica das redes sociais é completamente trazida dentro de uma lógica de conflito. Daí é que existe uma necessidade de regulamentação e de moderação de todas as redes muito mais transparente do que a que é feita hoje”, declarou Botelho.
“A quem o PL Fake News se dirige? Jornalzinho da esquina? A discussão de mesa de bar? Não, é a provedores cujo número de usuários seja superior a dez milhões. Estou falando de riscos sistêmicos. Não do tiozinho que posta besteira no Facebook”, finalizou.
‘Polarização burra’
Em outro momento de seu discurso, o secretário nacional de Justiça afirmou que a polarização acompanhada nos últimos quatro anos é uma “polarização burra”, por se tratar de divergências que não são acompanhadas por propostas.
De acordo com ele, essa polarização não é uma realidade unicamente brasileira. ”A gente tem o complexo de às vezes achar que os problemas que nós temos, e são vários, são circunscritos apenas ao Brasil”, disse. ”Existem Lulas e Bolsonaros, existe discussão entre eleitores de Lula e Bolsonaro em vários cantos do mundo. Exatamente igual”, declarou.
Para o secretário, a discussão do tema também se torna superficial quando as ideologias são impostas nele. ”Quando a gente começa a ouvir muita esquerda e direita na discussão sobre fake news, você está correndo uma grande distância de discutir isso só no entorno, sem atacar efetivamente o núcleo”, disse.
Botelho afirma, no entanto, que este não é um debate de entre esquerda e direita, porque ambas as vertentes praticam sim o uso de notícias sabidamente falsas, principalmente com fins eleitorais. ”Isso não é uma prerrogativa da direita ou da esquerda fazer uso de fake news. Não é um tema ideológico, e ao colocá-la [a ideologia] dentro desse tema, a gente começa a discuti-lo com superficialidade”, analisou.
Expectativas com o PL das Fake News
Ao JOTA, Botelho declarou que por ser tratado muitas vezes, “infelizmente”, de forma ideológica e política nesse momento tão polarizado, o tema das fake news acaba não sendo discutido de forma profunda. Na sua avaliação, isso faz com que se tenham concepções completamente erradas de propriamente o que diz o PL 2630/2020. ”Assim começa uma discussão falsa como se o PL tratasse do tema A, quando, na verdade, ele trata do tema B”, afirmou.
O secretário nacional da Justiça assinalou que, antes de qualquer julgamento acerca da PL das Fake News, é necessário que se faça um estudo ou análise do que se trata o projeto de lei. ”Para que a discussão, e assim a tramitação no Congresso siga seu rito próprio, muito influenciado por essa disciplina ideológica, política-partidária, principalmente agora que a gente vai ter uma eleição no ano que vem, ela tem que ser afastada dessa discussão”, prosseguiu.
De acordo com Botelho, sua expectativa é que se discuta o projeto de lei dentro do Congresso não somente do ponto de vista partidário, com interesses partidários ideológicos, mas sim com o ponto de vista técnico, com o interesse de proteger a democracia, a sociedade, os usuários e jamais cair no discurso de que qualquer regulamentação de rede social significa regulamentar a liberdade de pensamento e expressão, que são duas coisas completamente diferentes.
”A liberdade de expressão é inclusive reforçada dentro do PL [das fake news]. Então é preciso e eu espero que se faça uma discussão sensata, técnica e não uma discussão ideológica política”, concluiu.
Democracia defensiva
No painel seguinte, Gustavo Justino de Oliveira, professor-doutor de direito administrativo na USP e no IDP (Brasília); e Oscar Vilhena Vieira, professor da FGV Direito SP, debateram como a democracia pode se proteger dela mesma, além da importância de resguardá-la de ondas autoritárias.
Justino defendeu que as liberdades públicas devem ser construídas à luz de um Estado de Direito Democrático com algumas limitações da própria ordem jurídica. No entanto, Justino lembrou que a nova onda autoritária, que também é reacionária, se apoia em ideologias, muitas vezes vazias, e vem causando muitos prejuízos, sobretudo às liberdades públicas.
”E quando nós falamos sobre democracia militante, vai dar a entender que ela tem algum sentido ideológico, quando ela não tem em sua origem. Hoje, nós temos dois sentidos de democracia: o formal e o material, e ambos devem ser defendidos”, pontuou.
Justino definiu o sentido formal como a democracia representativa, ou seja, no sentido das eleições, do ciclo em que a própria democracia se renova, especialmente com os grupos que vão se alternando no poder. Já a democracia material, ou substancial, se diz respeito ao conteúdo democrático do Estado de Direito e do próprio conteúdo da democracia, não sob o ponto de vista institucional, mas enquanto valor. ”Na minha visão, nos escritos e nas construções mais contemporâneas de democracia defensiva e também de resistência, significa que é muito necessário criar providências, medidas, explícitas ou não no texto funcional para proteger a democracia”, afirmou.
”Quando o próprio Poder Executivo, ou parlamentares, ou mesmo representantes do Judiciário não são eleitos, mas acabam abertamente também desenvolvendo uma função estatal e ações antidemocráticas que visam, no seu limite, banir a democracia, quando elas partem do próprio Estado, o que você vai fazer?”, indagou Justino. Segundo ele, essa questão cria uma situação paradoxal, uma vez que: quem vai defender a democracia se quem representa o Estado é o primeiro a atacá-la?
Já Vilhena afirmou que a polarização visceral não é comum no regime democrático e que as situações recentes mostram que a democracia está sendo atacada e há um risco real para ela. Ele prosseguiu o debate concordando com o posicionamento proferido por Justino e mencionou o caso da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), deflagrado nos últimos dias. ”Nós tomamos conhecimento praticamente ontem que a Abin não funcionava, que não estava fazendo o que era competência legal dela fazer”, comentou.
”O risco existencial no caso brasileiro estava no fato de que o grande detrator da democracia era o presidente da República. O que nós temos que cuidar agora é da qualidade da nossa democracia, porque ela pode morrer por outras formas. E a falta de qualidade é uma razão pela qual ela se degrada. Porque se a democracia tiver mais um ciclo de promessas não cumpridas, certamente nós teremos um movimento muito oportunista que nos fará destruí-la”, disse Vilhena.
* A reportagem viajou a convite da organização do evento
MIRIELLE CARVALHO – Repórter em São Paulo. Atua na cobertura política e jurídica do site do JOTA. Estudante de Jornalismo na Universidade Anhembi Morumbi. E-mail: [email protected]
Fonte: JOTA
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